
*Por Fábio Alcântara
Muito se tem falado nos últimos dias sobre o lamentável episódio ocorrido em uma audiência na Comarca de Augustinópolis, cujo vídeo ganhou vulto nas redes sociais, expondo a Dra. Cássia Cayres, advogada no exercício legítimo de sua profissão, sendo interrompida de maneira ostensivamente agressiva por um magistrado. Em meio ao debate, surgem artigos e comentários que buscam, por meio de uma interpretação enviesada dos fatos, inverter a gravidade do ocorrido, sugerindo que o verdadeiro problema residiria na tentativa, pela advogada, de “culpar a vítima” – e, pior ainda, relativizando a conduta do magistrado por suposta defesa humanitária dos ofendidos pelo crime.
No entanto, é fundamental separar, de modo cristalino, duas esferas absolutamente diferentes, o mérito da atuação defensiva e a forma como ela foi tratada pela autoridade judicial. O que se discute, e que dá lastro à imensa repercussão do caso, não é o conteúdo ou a ousadia dos argumentos levantados pela defesa, mas sim o método utilizado pelo magistrado ao reprimir, eivando de gritaria, menosprezo e truculência, o sagrado direito de defesa. Convenhamos, às audiências judiciais compete, acima da verdade processual, a dignidade de todos os seus partícipes – partes, testemunhas, servidores e, principalmente, advogados, que são indispensáveis à administração da Justiça. É regra elementar do Estado Democrático de Direito.
Não é de hoje que os profissionais do direito que atuam em Augustinópolis relatam que os modos do famoso juiz vão além de meros arroubos passionais. A videoteca das audiências virtuais está repleta de situações equivalentes, nas quais advogados, testemunhas, servidores e até partes são tratados sem a mínima empatia ou urbanidade. Ora, se se tratar de prática rotineira, então já não se pode atribuir o episódio a meros “recortes” dos fatos, nem tampouco à típica animosidade das causas penais. O que está em jogo, repitamos, não é o ponto central da estratégia defensiva – ainda que possa não agradar ou sensibilizar ao julgador – mas sim a maneira autoritária pela qual o debate é sufocado. Isto sim, é grave.
Insiste-se em afirmar que estaria a defesa pecando pelo “culpar a vítima”, como se isso justificasse a absoluta derrocada do mínimo de civilidade pela autoridade judicial. Pois bem, mesmo admitindo que a linha de perguntas seguisse esse caminho – o que, diga-se, é premissa admitida no estudo da vitimologia e da dinâmica de determinados crimes –, nada, absolutamente nada, autoriza o juiz a se transformar no promotor irado, confundindo o papel de quem deve garantir a imparcialidade com o exercício apaixonado da defesa de determinada parte. No modelo brasileiro, o processo penal é acusatório. O magistrado é a instância de equilíbrio, não o acusador informal. A ele cabe zelar pela paridade de armas, pacificar o ambiente da audiência, jamais potencializar o clima de hostilidade.
À defesa, é assegurado o direito – e até mesmo o dever – de questionar circunstâncias pertinentes à apuração, inclusive no tocante à conduta da vítima, quando elementos objetivos podem influenciar na compreensão dos fatos. Se a testemunha estava ou não embriagada, se seus atos contribuíram ou não para o desfecho do episódio, são questões legítimas, inclusive do ponto de vista da literatura processual e criminal. O juiz pode, sim, indeferir perguntas, mas deve fazê-lo de modo motivado, cortês e absolutamente imparcial. Jamais aos gritos ou em tom humilhante, ou hostil, de sorte a transformar o exercício da defesa em penoso martírio. Isso viola frontalmente o Código de Ética da Magistratura, que exige que juízes pautem suas condutas pela dignidade, cortesia e respeito.
Buscar apresentar a explosão emocional do magistrado como gesto nobre de proteção às vítimas não convence, nem ética, nem juridicamente. Magistrados não são fiscais de humanidade seletiva. Não são chamados a sentir as dores de uma só parte, mas a garantir que o processo seja construído em bases sólidas, abertas e livres de paixões. O papel do juiz, sob pena de trair a própria jurisdição, não é o de justiceiro, mas de mediador imparcial
E se invertermos a régua? Com que moral o surfista juiz exige dos advogados compostura exemplar se não consegue, ele próprio, conter sua ansiedade e sua insensibilidade? Seria justo submetê-lo ao mesmo tratamento que dispensa a outrem – gritos, menosprezo, humilhações públicas? Certamente não. O Direito brasileiro veda a justiça feita a gritos; veda ao magistrado qualquer exteriorização de emoções que comprometam o devido processo legal e o respeito mútuo entre todos os agentes do processo.
Portanto, não se trata de feminismo exagerado, de tachar heróis como bandidos, ou de recortes descontextualizados. Trata-se, sim, de reafirmar o princípio basilar de todo o sistema judicial – respeito é inegociável – e à toga não é dada a prerrogativa de violá-lo sob nenhuma justificativa, seja em nome de vítimas, seja em nome do direito. Neste episódio, a indignação coletiva não nasce do método da defesa ou de argumentos processuais, mas na forma reiterada, descabida e autoritária com que um magistrado tem tratado aqueles que buscam na Justiça o palco para o contraditório e a ampla defesa.
Num Estado de Direito maduro, não se tolera tirania de nenhum dos lados, ainda que disfarçada de “zelo humanitário”. Ou aprendemos de vez que todos ali são iguais – e que a urbanidade é a primeira garantia – ou estamos apenas substituindo antigas arbitrariedades por novos rostos togados e nervosos.
Eis, então, a lição que fica, não do vídeo, mas de tudo o que ele representa: é preciso julgar com a mesma pedra com que seremos julgados. Se o critério for a gritaria, a falta de empatia e a truculência, não sobreviverá nenhum sentido digno à Justiça. Justiça que, afinal, não grita – apenas convence pelo exemplo e pela razão.
Fábio de Alcântara, advogado há mais de 22 anos
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