Em favor de Lula?

quarta-feira, 20 de maio de 2020 às 16:12
119 Visualizações
Francisco Sulo. Foto: Arquivo pessoal.

*Por Francisco Sulo

Decepcionante a recepção que tive da declaração do Lula ontem sobre a importância da pandemia, a ponto dele considerá-la bem vinda, pra melhor poder justificar a inviabilidade do Estado mínimo. É como alguém duvidar dos sentimentos por uma pessoa e desejar que ela morra pra poder, na ausência dela, corroborar como verdadeiro o sentimento duvidoso.

Publicidade

Lula apresentou uma razão num argumento pra justificar uma asserção, a de que o Estado mínimo não funciona. A razão apresentada (o caos de desamparo social ocasionado pela pandemia) foi acompanhada de uma intensa felicidade em se poder apresentar a tal razão, expressa no infeliz “ainda bem”. Na arena pública é ilusória a crença de que a razão predomina no embate.

Eu e muita gente que estamos à esquerda no espectro político não vamos deixar de admirar o Molusco nem de ver nele representado, embora não exclusivamente, o anseio de continuidade da mudança social no Brasil. E isso pela mesma razão porque skinheads continuarão fazendo menção ao führer, isto é, por enxergarem nele todos os anseios supremacistas que também compartilham.

Um outro exemplo. Recentemente Bolsonaro e Moro romperam. A parte que seguiu com Moro não o fez exatamente por enxergar em Bolsonaro indícios de corrupção, mas por manter mais simpatia pelo primeiro, o que quer dizer que a suposta deslealdade do ex-juiz não macula a simbologia que Moro presumivelmente representa para quem anseia acima de tudo por uma sociedade institucionalmente depurada do mal que é a corrupção política. Quem permaneceu com Bolsonaro o fez por considerar que interferências na PF são irrelevantes perto do que o capitão representa em termos de valores compartilhados por segmentos ultraconservadores no país, inclusive o combate ao movimento social esquerdista, considerado a vanguarda de toda degeneração social. É por isso que as falhas, inclusive as discursivas, dos agentes políticos só representam escandalo de grande monta pra quem não compartilha dos mesmos anseios políticos.

Dito isso, é ingênuo esperar mudança de atitude de sujeitos a partir de falhas discursivas ou de ações de lideranças de qualquer tipo em que se veem representados. E isso vale também para as crenças em geral. Nasci em ambiente evangélico e demorei entre 2001 e 2016 para me consolidar como agnóstico num processo bastante paulatino que até hoje ainda não estacionou. E eu não retornaria à fé num passe de mágica, como muitos presumem. C. S. Lewis retornou à fé mas não sem antes ter sido submetido a um árduo processo de reformulacao de pensamento que envolveu inclusive leituras em Gilbert K. Chesterton, eminente apologista e literato católico, autor de Ortodoxia e O crime do padre Brown. Não seria, pois, um erro de Lula que me faria hostilizá-lo neste instante, o que não quer dizer que eu concorde com ele naquilo que eu mesmo considero um equívoco argumentativo.

Voltando a uma asserção apresentada mais acima reitero: a arena pública não é espaço em que predomina a razão. Ela subjaz aos processos discursivos embora mais na condição de acessório na nossa argumentação do que na determinação do que consideramos verdadeiro. Na totalidade do que compreendo como sendo a realidade social, e o que é necessário para que ocorram nela quaisquer mudanças, não serão equívocos discursivos de Lula, Ciro, Dino ou Dilma que me porão instantaneamente em posição antagônica a qualquer deles. Do mesmo modo como o discurso preconceituoso, negacionista, e pró-mercado de Bolsonaro continuará mantendo próximo de si o seu séquito de simpatizantes em que pesem vacilos seus, linguísticos ou de qualquer ordem, cometidos a qualquer momento. As mudanças em relação a sujeitos que nos representam demoram a ocorrer, a menos que estejam sustentadas no mero interesse pessoal, passível de ser satisfeito por qualquer indivíduo. Como as crenças estão sempre em movimento, é possível crer que indivíduos que da última eleição pra cá se afastaram de Lula ou de Bolsonaro o fizeram porque essas crenças já estavam em fase de ruptura em relação àqueles líderes. Isso é algo totalmente normal.

Num ponto podemos concordar: você que me conhece não vai fazer nenhum julgamento sobre mim em relação ao que penso de Lula neste momento, simplesmente porque esse julgamento já ocorreu lá no início, quando da leitura do título. Mas se conseguiu ler o texto até este ponto, mesmo não concordando comigo, saiba que pretendo seguir os seus passos e manter sempre cada vez mais abertura em relação aos que não concordam comigo.

Francisco Sulo é servidor público e escritor.

-- Publicidade --

Comentários no Facebook