* Por Fabio Alcântara

*Por Fábio de Alcântara
Se a história do Poder Judiciário é, em essência, a construção cotidiana do respeito às garantias e à urbanidade, os recentes episódios ocorridos na 2ª Vara da Comarca de Augustinópolis mais parecem um “teatro do absurdo”. E cá estamos, eu e os leitores, assistindo ao mais novo espetáculo: a Associação de Magistrados do Estado do Tocantins – ASMETO – decidiu vestir a toga do corporativismo com tamanho desvelo que mereceria Oscar, não fosse o enredo tão tétrico quanto risível.
Para contextualizar, saibam os bem informados (e os ainda resistentes) que a OAB/TO, sempre relutante em enfrentar o Leviatã, desta vez precisou de um empurrãozinho
monumental; nada menos que a grande maioria dos advogados de DUAS subseções – Augustinópolis e Araguatins – subscreveu requerimento de apuração formal sobre o tratamento dado na referida vara, especialmente na condução das audiências. O vídeo que circula, aliás, presta mais serviço ao País do que muita CPI – pois são três momentos, em três audiências distintas, com a advogada Dra. Cássia como protagonista – e, confesso, não se tratava de teatro, pois a dor e o constrangimento não se simulam assim tão fácil.
Pois bem! Eis que surge, da cartola da Diretoria (note bem, só da Diretoria), uma nota da ASMETO – dessas que não podem faltar em roteiros tragicômicos – defendendo, com toda pompa e circunstância, a “aplicação rigorosa da Lei Mariana Ferrer”. Aqui, caro leitor, prepare-se: a nota é de uma valentia de fazer inveja a Dom Quixote. Frente a uma multidão de advogados clamando por respeito, decide-se assumir, solitariamente, a cruzada de blindar o magistrado… em nome de proteger mulheres! Como se não bastasse a ironia embutida, é de se perguntar: será que a dignidade das associadas (magistradas mulheres) foi consultada antes de servirem de escudo para chancelar o destempero alheio?
A nota, a julgar pelo teor, desconhece o verbo “ouvir”. Certamente não passou pelo crivo do órgão colegiado da Associação, quiçá das associadas que, imagino, devem ter
sentido o rubor da vergonha alheia ao saberem que agora fazem parte, mesmo que involuntariamente, do bloco “defendendo o indefensável”. Afinal, a quem interessa associar seu próprio nome ao espetáculo do “quem manda aqui sou eu” – gritado, vejam só, para calar uma advogada mulher, no exercício pleno do sagrado direito de defesa?
A cortina de fumaça levantada pela ASMETO beira o implausível, já que apela à Lei n. 14.245/21 (Lei Mariana Ferrer) para justificar gritos, truculência e o cerceamento explícito do direito de defesa. Ora, ora. A lei foi criada para impedir a vitimização secundária de mulheres em processos judiciais – proteger vítimas de agressão de abusos, humilhações e constrangimentos. Usá-la para, de modo atabalhoado, legitimar o silenciamento de uma
MULHER advogada é, com o perdão do trocadilho, um plot twist digno de novela mexicana.
Não é cômico – é tétrico.
Peço licença à Diretoria da ASMETO para – com a malícia dos velhos criminalistas – destacar: se toda vez que um advogado perguntar se uma vítima bebeu, fumou ou dormiu virará crime de violência institucional, podemos, sinceramente, substituir os advogados por carrascos. E juízes por moralistas de púlpito. O artigo que a nota chama de “central” proíbe manifestações sobre circunstâncias que atentem contra a dignidade da vítima. Desde quando indagar sobre consumo de bebida alcoólica configura revitimização? Mil perdões, mas pergunta ao estilo “se estava alterada” faz parte da rotina investigativa criminal desde que o Brasil é Brasil. E, pasmem, é também arma para a própria verdade real.
A nota silencia sobre pontos nevrálgicos – como os reiterados gritos do mesmo magistrado noutras audiências (lá nem se falava em perguntas sobre álcool, ou de vítima de violência doméstica, mas o tratamento não mudou). De igual modo, ignora a perplexidade dos que estavam presentes no júri. Defender prerrogativa de magistrado é garantir o decoro do cargo, não usar o escudo da Lei Mariana Ferrer para justificar autoritarismo. Afinal, seria o cúmulo da hipocrisia defender direitos de mulheres… calando e constrangendo uma advogada mulher.
Pior. Imagine-se agora, leitor, no lugar de uma magistrada – séria, estudiosa, comprometida – obrigada por ato de diretoria a encampar defesa de destempero que em
nada honra a história do Judiciário tocantinense. Francamente – bastava assistir ao vídeo para perceber que o mérito da pergunta pouco importa. O que se vê ali é a defesa sendo calada, e, o que agrava: sendo calada aos gritos.
Ah, a velha máxima dos “fins que justificam os meios” – nesse caso, justificando até mesmo a ausência de compostura e respeito. O que pensariam nossos professores de direito processual penal? Iam tratar defesa como afronta, acusação como dogma e urbanidade como “luxo dispensável”? Não. Sabiam (e ensinaram) que o juiz é presidente do processo, mas nunca dono das pessoas. E respeito, esse sim, não se decreta, mas se constrói no dia a dia das audiências, sem shows nem berros.
Por tudo isso, mal disfarçada a tentativa de proteger o inaceitável, a nota da ASMETO expõe não só o magistrado, mas toda a comunidade de juízes ao constrangimento nacional – cria-se o risco de parecer que o corporativismo ali fala mais alto que o compromisso maior com a dignidade da Justiça. E nisso, prejuízo para todos nós, operadores do Direito – especialmente as magistradas, que mereciam ter suas vozes ouvidas antes de serem usadas como escudo contra o óbvio.
De minha parte, aguardo – sincera e ironicamente – a manifestação respeitosa de quem valoriza de fato o diálogo. Porque desculpar truculência com defesa de lei abstrata é demais até para os mais criativos roteiristas. Em defesa da Justiça, do contraditório, da advocacia, das mulheres e, acreditem, das próprias magistradas. Então, que venham as vozes ponderadas da magistratura. As associadas, em especial, têm a palavra. Porque gargalhada (e perplexidade) diante do absurdo é o mínimo que nos resta enquanto o bom senso não volta à Diretoria Executiva da ASMETO.
Por um criminalista do tempo do “fio do bigode”, daqueles que preferem raciocínio ao grito (e, de preferência, um bom café à mesa de audiência).
Fábio de Alcântara, apenas um reles advogado que defende a boa e educada magistratura
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