*Por Fábio de Alcântara
No Brasil, é impossível negar: somos um país curioso quando o assunto é formalidade. Uma dessas peculiaridades gira em torno de um costume que há muito ultrapassou as barreiras da tradição e adentrou o terreno das polêmicas: advogados que exigem ser tratados como “doutor”. Para alguns, isso soa como uma prática de prestígio ou respeito. Para outros, no entanto, é apenas um reflexo de vaidade e elitismo que, na prática, já não condizem com os tempos modernos.
Antes de mais nada, vale esclarecer: no que diz respeito à minha pessoa, não há, absolutamente, qualquer exigência ou desconforto por eu ser ou não chamado de “doutor”. Pessoalmente, vejo a questão com tranquilidade, sem depositar importância ou vaidade nesse título. No entanto, não posso deixar de observar o quanto essa discussão tem gerado debates, afrontas e até.
Basta vivenciar o dia a dia de um advogado ou ouvir relatos profissionais para perceber que, em muitos casos, o título é tratado mais como uma necessidade imaginária de distinção do que como algo baseado em mérito real. Lembro, inclusive, de um episódio marcante, quando um analista técnico de um cartório eleitoral travou verdadeira contenda com um advogado local. O motivo? O último não o havia tratado pela alcunha de “doutor”. A situação poderia ser simples, mas ganhou tons quase cômicos diante da indignação do analista e de alguns colegas da advocacia, que seguiram alimentando o conflito como se ele fosse algo imprescindível à dignidade de suas funções.
Adentrando o cerne dessa questão, é bastante comum ouvir argumentos históricos para justificar o uso do título. O mais famoso é a ideia de que Dom Pedro I, no início do Império, teria concedido o título de doutor a todo bacharel em Direito formado nas instituições da época, por meio da Lei de 11 de agosto de 1827. Essa lei, dizem alguns, teria validade até hoje. Mas sejamos claros: essa justificativa não se sustenta nem na história, nem no direito, muito menos na lógica.
Com a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, todo o ordenamento jurídico do Império foi extinto e substituído por novos sistemas de leis e regras. Portanto, essa ideia de que advogados ainda são “doutores” por força de tradição imperial não passa de um mito, e um mito que já deveria ter sido desmistificado há muito tempo.
Outro ponto que merece análise é o contexto educacional e social da época. No Brasil imperial e durante boa parte do início da República, concluir um curso superior era algo acessível a pouquíssimos. O simples fato de obter um diploma já era motivo de altíssimo reconhecimento social. Alguém formado em Direito, Medicina ou Engenharia era visto como um dos pilares da elite intelectual do país. Era um status reservado a quem tinha recursos e, frequentemente, poder político. O título de “doutor”, então, surgiu quase de forma espontânea, uma maneira de reconhecer o feito extraordinário de concluir os estudos superiores em uma época de tantas dificuldades e barreiras à educação.
Hoje, no entanto, esse cenário mudou completamente. A partir de 2003, com o governo de Lula e os programas de ampliação ao acesso educacional, como o FIES e o ProUni, a quantidade de faculdades e universidades cresceu exponencialmente. Isso trouxe mais oportunidades — o que é algo extremamente positivo —, mas também abriu as portas para a proliferação de cursos com critérios questionáveis de qualidade. No caso dos cursos de Direito, o impacto foi ainda mais significativo: o Brasil tornou-se o país com o maior número de advogados no mundo. Temos, sozinhos, mais advogados registrados do que todo o restante do planeta somado.
Com tantos profissionais no mercado, é inevitável que o peso simbólico do diploma em Direito tenha sido reduzido. Não que a profissão tenha perdido sua relevância — advogados continuam desempenhando funções essenciais na sociedade. Mas acreditar que bacharelar-se em Direito ainda dá direito a distinções elitistas, como ser tratado automaticamente por “doutor”, soa anacrônico e, para muitos, completamente despropositado. E aqui é importante expandir a perspectiva: essa exigência de que operadores do direito sejam tratados por “doutor” não é merecida nem por advogados, nem por juízes, promotores, delegados ou qualquer outro profissional da área. O mérito pelo título de doutor, na acepção formal, é restrito àqueles que concluíram um doutorado acadêmico, após anos de estudo e dedicação científica — e não algo automaticamente atribuído por formação superior apenas.
Ainda assim, alguns insistem — e não param por aí. É comum vermos advogados exibindo com orgulho o título de “doutor” em placas, cartões de visita e até mesmo outdoors. Sim, outdoors! Em diversas cidades do Brasil, não é raro encontrar painéis publicitários de advogados promovendo seus serviços e, ao lado do nome, o subtítulo “Doutor”. É algo que não passa despercebido e, no olhar mais crítico, reflete uma tentativa forçada de autopromoção que, honestamente, não se justifica.
Para complicar ainda mais, há os casos em que a ausência do tratamento de “doutor” é encarada como verdadeira ofensa pessoal. É comum vermos advogados se sentindo afrontados ou desrespeitados quando são chamados apenas pelo nome, sem a inclusão de “doutor” — algo que, em minha visão, é completamente desnecessário. Não há, nem de direito nem de fato, qualquer amparo jurídico que sustente essa exigência.
Por fim, é preciso lembrar quem são os verdadeiros “doutores” na vida de muitas pessoas: os homens e mulheres simples do povo, que se sacrificam diariamente para garantir o sustento de suas famílias e muitas vezes proporcionam a formação educacional de seus filhos. São esses pais e mães que, para mim, merecem esse título honorário, pois não há maior mérito na vida do que lutar, com dignidade e esforço, pelo futuro de seus filhos e do país.
O título de “doutor” para advogados, juízes, promotores ou qualquer outro operador do direito deveria ser encarado como um resquício histórico e nada mais. Insistir em mantê-lo como uma exigência social ou profissional não traz prestígio algum; pelo contrário, reforça uma imagem de elitismo ultrapassado, desalinhada com as responsabilidades éticas que tais profissões deveriam carregar. Melhor seria que nos preocupássemos menos com como somos chamados e mais com como exercemos nossas funções de forma ética e verdadeiramente transformadora. Esse é o verdadeiro título que importa.
Fábio de Alcântara, advogado
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